O fanático Baronio considera a papisa um monstro que os ateus e os heréticos tinham evocado do inferno por sortilégios e malefícios; o supersticioso Florimundo Raxmond compara Joana a um segundo Hércules que teria sido enviado do céu para esmagar a Igreja Romana, cujas abominações tinham excitado a cólera de Deus. Contudo, a papisa foi vitoriosamente defendida por um historiador inglês chamado Alexandre Cook; a sua memória foi por ele vingada das calúnias dos seus adversários e o pontificado de Joana retomou o seu lugar na ordem cronológica da história dos papas. As longas disputas dos católicos e dos protestantes acerca desta mulher deram um atrativo poderoso à sua história e somos obrigados a entrar em todos os detalhes de uma existência tão extraordinária. Eis aqui narrado, de que maneira o jesuíta Labbé, um dos inimigos da papisa, enviou o seu cartel de desafio aos cristãos reformados: "Dou o mais formal desmentido a todos os heréticos da França, da Inglaterra, da Holanda, da Alemanha, da Suíça e de todos os países da Terra para que possam responder com a mais leve aparência de verdade à demonstração cronológica que publiquei contra a fábula que os heterodoxos narraram sobre a papisa Joana, fábula ímpia cujas bases destruí de um modo invencível". Os protestantes, longe de ficarem intimidados com a imprudência do jesuíta, refutaram vitoriosamente suas alegações, demonstraram todo o edifício das suas astúcias e das suas mentiras e, apesar dos anátemas do padre Labbé, fizeram sair Joana dos espaços imaginários em que o fanatismo a tinha envolvido. No seu libelo, o padre Labbé acusava João Hus, Jerônimo de Praga, Wiclef, Lutero e Calvino de serem inventores da história da papisa. Porém, provou-se-lhe que, tendo Joana subido à santa sede aproximadamente seis séculos antes da aparição do primeiro desses homens ilustres, era impossível que eles tivessem imaginado essa fábula. De qualquer forma, Mariano, que escreveu sobre a vida da papisa mais de cinqüenta anos antes deles, não poderia tê la copiado de suas obras. A História, cujas vistas morais se elevam acima dos interesses das seitas religiosas, deve pois ocupar se em fazer triunfar a verdade sem se inquietar com as cóleras sacerdotais. Assim, a existência de Joana não deve ferir de modo algum a dignidade da santa sede, pois ela, no decurso do seu reinado, não imitou as astúcias, as traições e as crueldades dos pontífices do nosso século. Crónicas contemporâneas estabelecem, com toda a evidência, a época do reinado de Joana. Seus autores, sendo padres e monges, todos zelosos partidários da santa sede, eram interessados em negar a aparição escandalosa de uma mulher no trono de São Pedro. Verdade é que muitos autores do nono século não fazem menção a esta heroína, silêncio que atribui-se com justa razão à barbárie da época e ao embrutecimento do clero. Uma das provas mais incontestáveis da existência de Joana está exatamente no decreto, publicado pela corte de Roma, que proibiu a sua colocação no catálogo dos papas. "Assim, acrescenta o sensato Launay, não é justo sustentar que o silêncio que se guardou sobre esta história, nos tempos que se seguiram imediatamente ao acontecimento, seja prejudicial à narrativa que mais tarde foi feita. Mais de um século antes de Mariano escrever os manuscritos que deixou a abadia de Fulde, diferentes autores tinham já narrado muitas versões sobre o pontificado da papisa. Porém, foi este sábio religioso que esclareceu todas as dúvidas e suas crônicas foram aceitas como autênticas pelos eruditos conscienciosos, que estabelecem as verdades históricas sobre os testemunhos de homens cuja probidade e luzes são incontestáveis. E com efeito, toda a gente concorda em reconhecer que Mariano era um escritor judicioso, imparcial e verídico; a sua reputação está tão bem estabelecida que a Inglaterra, a Escócia e a Alemanha reivindicam a honra de serem sua pátria. Além disso, o seu caráter de sacerdote e a dedicação que mostrou sempre pela santa sede não permitem que se suspeite de parcialidade contra a igreja católica. Mariano, longe de ter sido um ente fraco ou um visionário, era muito esclarecido, muito instruído, cheio de firmeza, de religião e tinha dado provas incontestáveis da dedicação que consagrava à corte de Roma, defendendo com grande coragem o papa Gregório VII contra o imperador Henrique IV. Não é possível, pois, recusar a autoridade de um semelhante testemunho; de outro modo, não existiria um único fato histórico ao abrigo das contestações ou que se pudesse considerar como evidente. Por esta razão, os jesuítas que têm procurado por em dúvida a existência da papisa, compreendendo a força que os escritos deste historiador davam aos seus adversários, quiseram acusar de inexatidão as cópias das obras de Mariano. Mabillon, sobretudo, defende que existem exemplares nos quais não se trata da papisa. Para refutar esta asserção, basta consultar os manuscritos das principais bibliotecas da Alemanha, da França, de Oxford e do Vaticano. Além disso, está provado que os manuscritos autografados pelo religioso, os quais foram conservados na França, durante muitos séculos na biblioteca do Domo, contém realmente a história da papisa. É igualmente impossível admitir que um homem do caráter de Mariano Scotus tivesse mencionado nas suas crónicas uma aventura tão singular se não fosse verdadeira. Contudo, admitindo que fosse capaz de uma tal impostura, é provável que os papas que governaram então a Igreja tivessem guardado silêncio sobre tal impiedade? Gregório VII, o mais orgulhoso dos pontífices e o mais apaixonado pela pretensão à infalibilidade da santa sede teria permitido que um frade desonrasse a corte de Roma com tanta insolência? Victor III, Urbano II, Paschoal II, contemporâneos de Mariano, teriam deixado impune esse ultraje? Finalmente, os escritores eclesiásticos do seu século, e sobretudo o célebre Alberic do Monte Cassino, tão dedicado aos papas, teriam deixado de se levantar contra uma tal infâmia? Assim, segundo os testemunhos mais irrecusáveis e mais autênticos, está demonstrado que a papisa Joana existiu no nono século, que ocupou a cadeira de S. Pedro, que foi o vigário de Jesus Cristo na Terra e proclamada soberana pontífice de Roma!!! Uma mulher assentada na cadeira dos papas, ornando lhe a fronte a tiara e tendo nas mãos as chaves de S. Pedro é um acontecimento extraordinário de que os faustos da história oferecem um único exemplo! E o que mais nos admira não é o fato de uma mulher elevar-se pelos seus talentos acima de todos os homens do seu século, pois que houve heroínas que comandaram exércitos, governaram impérios, encheram o mundo com a fama da sua glória, da sua sabedoria e das suas virtudes. mas que Joana, sem exércitos, sem tesouros, somente com o apoio de sua inteligência, fosse assaz hábil para enganar o clero romano e fazer com que lhe beijassem os pés os orgulhosos cardeais da cidade santa. É isso o que a coloca superior a todas as heroínas, porque nenhuma deIas se aproxima do que há de maravilhoso numa mulher ordenada papa. Numa vida tão extraordinária como a de Joana devemos mencionar todos os acontecimentos que nos foram transmitidos pelos historiadores e entrar em detalhes nas ações dessa mulher notável. Eis a versão de Mariano Scotus sobre o nascimento da papisa: "Em princípios do nono século, Karl, o Grande, depois de ter subjugado os saxônios, empreendeu a conversão desses povos ao cristianismo e pediu à Inglaterra padres eruditos que o pudessem auxiliar nos seus projetos. No número de professores que passaram à Alemanha contava-se um padre inglês acompanhado de uma menina que, estando grávida, roubara à sua família para ocultar esse estado. Os dois amantes foram obrigados a interromper a sua viagem e a parar em Mayence, onde em breve a jovem inglesa deu à luz uma filha cujas aventuras deviam ocupar um dia os séculos futuros; essa criança era Joana." Não se conhece com exatidão o nome que ela usou na sua infância; a filha do padre inglês é igualmente chamada Agnés por alguns autores. Gerberta ou Gilberta por outros e, finalmente Joana pela maioria . O jesuíta Sevarius pretende que lhe chamem também Isabel, Margarida, Dorotéia e Justa. Não sabemos acerca do sobrenome que ela adotou. Asseguram uns que ela acrescentava ao seu nome a designação de Inglês; querem outros juntá-lo ao nome de Gerberta, e um autor do décimo quarto século chama-lhe de Magnânima na sua crônica, para exprimir certamente a ousadia e a temeridade de Joana, à imitação de Ovídio, que se serve da expressão magnanimus Phaethon. Esses mesmos autores apresentam menos contradições relativamente ao lugar do seu nascimento: pretendem alguns que ela nascera na Grã Bretanha, outros designam Mayence, outros finalmente Engelkein, cidade do Palatinado, célebre pelo nascimento de Carlos Magno. Mas o maior número reconhece que Joana era de origem inglesa, que foi educada em Mayence e que nasceu em Eugelkein, aldeia situada na vizinhança daquela cida Joana tornara se uma formosa rapariga e o seu espírito, cultivado pelos cuidados de um pai muito instruído, tomara um desenvolvimento tal que todos os doutores que se aproximavam dela ficavam admirados pelas suas respostas. A admiração que ela inspirava aumentou ainda pela ciência, e aos doze anos a sua instrução se igualava à dos homens mais distintos do Palatinado. Todavia, quando chegou a idade em que as mulheres começam a amar, a ciência foi insuficiente para satisfazer os desejos daquela imaginação ardente e o amor mudou os destinos de Joana. Um jovem estudante de família inglesa e frade da abadia de Fulde foi seduzido pela sua beleza e apaixonou-se loucamente por ela. "Se ele a amou com extremo, diz a crónica, Joana, pelo seu lado, não foi nem insensível nem cruel". Vencida pelos protestos e arrastada pelas inspirações do seu coração, Joana consentiu em fugir da casa paterna com o seu amante. Deixou o seu nome verdadeiro, vestiu-se de homem e seguiu o jovem abade para a abadia de Fulde, onde o superior, enganado com aquele disfarce, recebeu Joana no seu mosteiro e colocou a sob a direção do sábio Raban Maur. Algum tempo depois, o constrangimento em que se achavam os dois amantes fez lhes tomar a determinação de saírem do convento e irem para a Inglaterra continuar os seus estudos. Em breve se tornaram os maiores eruditos da Grã Bretanha e resolveram visitar novos países a fim de observarem os costumes dos diferentes povos e estudar-lhes as linguas. Em primeiro lugar visitaram a França, onde Joana, debaixo sempre do hábito monacal, disputou com os doutores franceses e excitou a admiração de personagens célebres da época, como a famosa duquesa de Septimania, Santo Auscario, o frade Bertram e o abade Lopo de Ferrière. Depois dessa primeira viagem os dois amantes empreenderam visitar a Grécia; atravessaram as Gálias e embarcaram em Marselha num navio que os conduziu á capital dos helenos, a antiga Atenas, que era o foco mais ardente das luzes, o centro das ciências e das belas letras, possuindo ainda escolas e academias citadas em todo o universo pela eloquência dos seus professores e pelo profundo saber dos seus astrônomos e dos seus fisicos. Quando Joana chegou a esse magnífico país tinha vinte anos e achava-se em todo o esplendor da sua beleza. Porém, o hábito monástico ocultava o seu sexo de todos os olhares, e o seu rosto, empalidecido pelas vigílias e pelo trabalho, dava lhe ares de um formoso adolescente ao invés de uma mulher. Durante dez anos os dois ingleses viveram sob o formoso eco da Grécia, cercados de todas as ilustrações científicas e prosseguindo os seus estudos em filosofia, teologia, letras divinas e humanas, artes e história sagrada e profana. Joana aprofundara, compreendera e explicara tudo, juntando seus conhecimentos universais a uma eloqüência prodigiosa que enchia de admiração aqueles que eram admitidos a ouvi-la. No meio dos seus triunfos, Joana foi ferida por um golpe terrível: o companheiro dos seus trabalhos, o seu amante querido, aquele que durante muitos anos estivera junto dela, foi atacado por uma enfermidade súbita e morreu em poucas horas, deixando a desditosa só e abandonada na Terra. Joana tirou do seu próprio desespero uma nova coragem, venceu a sua aflição e resolveu sair da Grécia. Além disso, era-lhe impossível ocultar por mais tempo o seu sexo num país onde os homens usavam barbas crescidas, escolhendo Roma como o lugar de seu retiro, porque lá o uso ordenava aos homens não usarem barba. Talvez não fosse este unicamente o motivo que determinou a sua preferência pela cidade santa, mas o estado de agitação em que se achava então a capital do mundo cristão podia oferecer à sua ambição um teatro mais vasto do que a Grécia Logo que chegou á cidade santa. Joana fez-se admitir na academia a que chamavam escola dos gregos para ensinar as sete artes liberais e, particularmente, a retórica. Santo Agostinho tornara já muito ilustre aquela escola e Joana aumentou-lhe a reputação. Não somente continuou os seus cursos ordinários como também introduziu outros de ciências abstratas que duravam três anos, onde um imenso auditório admirava o seu prodigioso saber. As suas lições, os seus discursos e mesmo os seus improvisos eram feitos com uma eloqüência tão arrebatadora que o jovem professor era citado como o mais belo gênio do século, e que, na sua admiração, os romanos lhe conferiam o título de príncipe dos sábios. Os senhores, os padres, os monges e sobretudo os doutores honravam-se de serem seus discípulos. “O seu procedimento era tão recomendável como os seus talentos; a modéstia dos seus discursos e das suas maneiras, a regularidade dos seus costumes e sua piedade, como diz Mariano brilhavam como uma luz aos olhos dos homens. Todos estes exteriores eram uma máscara hipócrita sob a qual Joana ocultava projetos ambiciosos e culpados. Por isso, no tempo em que a saúde vacilante de Leão IV permitia aos padres forjarem intrigas e cabalas, um partido poderoso se declarou por ela e publicou altamente pelas ruas da cidade que só ela era digna de ocupar o trono de S. Pedro." E com efeito, depois da morte do papa, os cardeais, os diáconos, o clero e o povo elegeram-na por unanimidade para governar a Igreja de Roma! Joana foi ordenada na presença dos comissários do imperador, na basílica de São Pedro, por três bispos. Em seguida, tendo revestido as vestes pontificais, dirigiu-se acompanhada de um imenso cortejo ao palácio patriarcal e assentou-se na cadeira apostólica. Por muito tempo os padres discutiram a seguinte e importante questão: Joana foi elevada ao santo ministério por uma arte diabólica ou por uma direção particular da Providência? Uns pretendem que a Igreja deve sentir uma grande humilhação por ter sido governada por uma mulher. Outros sustentam, pelo contrário, que a elevação de Joana à santa sede, longe de ser um escândalo devia ser glorificada como um milagre de Deus, que permitiu que os romanos procedessem à sua eleição para revelar que haviam sido arrastados pela influência maravilhosa do Espírito Santo. Contudo, essa mulher, que inspirava um tão grande respeito aos soberanos da Terra, que subjugava os povos às suas leis, que atraía a veneração do universo inteiro pela superioridade de suas luzes e pela pureza da sua vida, iria em breve quebrar o pedestal da sua grandeza e espantar Roma com o espetáculo de uma queda terrível! Por amor, perde o trono e a vida Algumas crónicas religiosas dizem que o ano de 854 foi assinalado por fenômenos milagrosos em todos os países da cristandade. "A terra tremeu em muitos reinos e uma chuva de sangue caiu na cidade de Bresseneu ou Bresnau. Na França, nuvens de gafanhotos monstruosos, armados de dentes compridos e acerados, devoraram todas as colheitas das províncias que atravessaram; em seguida, impelidos por um vento sul para o mar, entre Havre e Calais, foram todos submergidos, lançando seus restos impuros nas praias, e lançando no ar uma tal infecção que engendrou uma epidemia que matou uma grande parte dos habitantes. Na Espanha, o corpo de S. Vicente, que fora arrancado do seu túmulo por um frade sacrílego para o vender em pedaços, voltou, em uma noite, na cidade de Valência, para uma pequena aldeia próxima de Montauban e parou nos degraus da Igreja, pedindo em voz alta para se recolher no seu relicário. Todos esses “sinais”, acrescenta o piedoso legendário, "anunciavam infalivelmente a abominação que devia manchar a cadeira evangélica”. Joana, entregue a estudos sérios, conservava um procedimento exemplar depois da morte de seu amante. No princípio de seu pontificado praticou virtudes que lhe mereceram o respeito e afeição de todos os romanos. Posteriormente, ou por propensão irresistível ou porque a coroa tenha o privilégio de perverter os mais belos caráteres, Joana entregou-se aos gozos do poder soberano e quis partilhá-los com um homem digno do seu amor. Escolheu um amante, assegurou-se da sua discrição, encheu-o de honras e de riquezas, guardando tão bem o segredo de suas relações que só por conjecturas se podia descobrir o favorito da papisa. Joana, assustada com aquela revelação, apressou-se em terminar o conselho e retirou-se para o seu palácio. No momento em que se recolheu para os seus aposentos interiores, o demônio se apresentou diante dela e lhe disse: "Santíssimo padre, depois do vosso parto, pertencer-me-eis em corpo e alma e apoderar-me-ei de vós para que queimeis comigo no fogo eterno". Esta ameaça terrível, ao invés de desesperar a papisa, reanimou o seu espírito e fez nascer no seu coração a esperança de acalmar a cólera divina com um arrependimento profundo. Impôs-se rudes penitências, cingiu seus membros delicados com um cilício grosseiro e dormiu sobre as cinzas. Finalmente, os seus remorsos foram tão ferventes que Deus, tocado das suas lágrimas, enviou-lhe uma visão. Apareceu-lhe um anjo e ofereceu-lhe como castigo de seu crime, em nome de Jesus Cristo, o seu reconhecimento como mulher diante de todo o povo de Roma, ou a sua entrega às chamas eternas. Joana aceitou o opróbrio e esperou corajosamente o castigo que o seu procedimento sacrílego merecera. Na época das Rogações, que correspondia à festa anual que os romanos chamavam Ambarralia, onde havia uma procissão solene, a papisa, segundo o uso estabelecido, montou acavalo e dirigiu se à igreja de São Pedro. A papisa, revestida com os ornamentos pontificais, saiu da catedral e dirigiu se à basílica de São João de Latrão com um pomposo séquito que a precedia pela cruz e pelas bandeiras sagradas, e seguida pelos metropolitanos, bispos, cardeais, padres, diáconos, senhores, magistrados e por uma grande multidão do povo. Tendo chegado à praça pública entre a basílica de São Clemente e o anfiteatro de Domiciano, chamado Coliseu, assaltaram na as dores do parto com tal violência que caiu do cavalo. A infeliz retorcita-se pelo chão com gemidos horríveis, até que, conseguindo rasgar os ornamentos sagrados que a cobriam, no meio de convulsões tremendas e na presença de uma grande multidão, a papisa Joana deu a luz uma criança! Joana não pôde suportar o excesso de sua humilhação e a vergonha de ter sido vista por todo o povo numa situação tão terrível. Fez, assim, um esforço supremo para dizer o último adeus ao cardeal que a amparava nos braços, e a sua alma voou para o céu. Desta forma, morreu a papisa Joana, no dia das Rogações, em 855. depois de ter governado a igreja de Roma durante mais de dois anos. Ali se edificou uma capela, ornada com uma estátua de mármore representando a papisa vestida com hábitos sacerdotais, com a tiara na cabeça, tendo nos braços uma criança. O pontífice Bento III mandou quebrar essa estátua em fins do seu reinado, mas as ruínas da capela viam-se ainda em Roma no décimo quinto século. Grande número de visionários preocupavam-se gravemente em investigar o castigo que Deus infligiria à papisa depois de sua morte. Uns consideravam a ignomínia dos seus últimos momentos como uma expiação suficiente, o que estava de acordo com a opinião vulgar de que os papas, quaisquer que fossem os seus crimes, não podiam ser condenados. Outros, menos indulgentes que os primeiros, afirmavam que Joana foi condenada por toda a eternidade a ficor suspensa de um dos lados das portas do inferno, com o seu amante do outro, sem nunca poderem se unir. A prova da cadeira furada O clero de Roma, ferido na sua dignidade e cheio de vergonha por aquele acontecimento singular, publicou um decreto proibindo aos pontífices atravessarem a praça pública onde tivera lugar o escândalo. Por isso, depois dessa época, no dia das Rogações, a procissão, que devia partir da basílica de São Pedro para se dirigir a Igreja de São João de Latrão, evitava aquele lugar abominável situado no meio do seu caminho, e fazia um longo roteiro. Estas precauções eram suficientes para manchar a memória da papisa. Porém, o clero, querendo impedir que um semelhante escândalo pudesse renovar-se, imaginou para a entronização dos papas um uso singular e apropriado à circunstância, o qual leve o nome de “a prova da cadeira furada”. O sucessor de Joana foi o primeiro a se submeter a essa prova, que passou a ser realizada na eleição do pontífice, no momento em que era conduzido ao palácio de Latrão para ser consagrado solenemente. Em primeiro lugar, este assentava se numa cadeira de mármore branco colocada no pórtico da igreja, entre as duas portas de honra; essa cadeira não era furada, e deram lhe esse nome porque o santo padre, ao levantar se dela entoava o seguinte versículo do salmo cento e treze: "Deus eleva do pó o humilde para o fazer assentar acima dos príncipes!" Em seguida, os grandes dignitários da igreja davam a mão ao papa e conduziam-no á capela de São Silvestre, onde se achava uma outra cadeira de pórfiro, furada no centro, na qual faziam assentar o pontitítïce. Antes da consagração, os bispos e os cardeais faziam colocar o papa sobre essa segunda cadeira, meio estendido, com as pernas separadas, e permanecia exposto nessa posição, com os hábitos pontífices entreabertos, para mostrar aos assistentes as provas da sua virilidade. Finalmente, aproxiniavam-se dele dois diáconos, asseguravam-se pelo tato de que os olhos não eram iludidos por aparências enganadoras e davam disso testemunho aos assistentes gritando com voz alla: "Temos um papa!". Essa cerimônia das cadeiras furadas é mencionada na consagração de Honorio III, em 1061; na de Pascoal II, em 1099; na de Urbario VI, eleito no ano de 1378. Alexandre VI, reconhecido publicamente em Roma como pai dos cinco filhos de Rosa Vanozza, sua amante, foi submetido à mesma prova. Finalmente ela subsistiu até o décimo sexto século, e Cressus, mestre de cerimónias de Leão X, refere no jornal de Paris todas as formalidades da prova das cadeiras furadas a que o pontífice foi submetido. Depois de Leão X, deixou ela de ser praticada, ou porque os padres compreenderam o ridículo de um uso tão inconveniente, ou porque as luzes do século não permitiram mais um espetáculo que ofendia a moral pública. As cadeiras furadas, que não eram mais necessárias, foram tiradas do lugar onde estavam colocadas e levadas para a galeria que conduz à capela, no palácio de Latrão. O padre Mabillori, na sua viagem à Itália em 1685, fez uma descrição dessas duas cadeiras, que examinou com a maior atenção, e afirma que eram de porfiro e semelhantes, na forma, a uma cadeira para enfermos. Excluída da sucessão dos papas Os ultramontanos, confundidos pelos documentos autênticos da história e não podendo negar a existência da papisa Joana, consideraram toda a duração do seu pontificado como uma vagatura da santa sede e fazem suceder a Leão IV o papa Bento III, sob o pretexto de que uma mulher não pode desempenhar as funções sacerdotais, administrar os sacramentos e também conferir ordens sagradas. Mais de trinta autores eclesiásticos alegam este motivo para não incluirem Joana no número dos papas; mas um fato essencialmente notável vem dar um desmentido formal à sua opinião. Em meados do décimo quinto século, tendo sido restaurada a catedral de Sienna por ordem do príncipe, mandou-se esculturar em mármore os bustos de todos os papas até o Pio II, que reinava então, e colocou-se no lugar da papisa o seu próprio retrato, entre Leão IX e Bento III, com o nome de "João VIII, papa mulher”. Este fato importante autorizaria a contar Joana como o centésimo oitavo pontífice que teria ornado a Igreja. Contudo nem por isso fica menos provado que o reinado da papisa é autêntico e que uma mulher ocupou gloriosaniente a cadeira sagrada dos pontífices de Roma. Alguns neo católicos rejeitariam ainda a verdade e recusam admitir a autenticidade de todas essas provas, sob o pretexto de que Deus não poderia permitir que a cadeira de S. Pedro, fundada pelo próprio Jesus, fosse assim ocupada por uma mulher impúdica. Barônio, esse defensor zeloso da tiara, diz que Bonifácio VI e Estevão VII eram celerados infames, monstros abomináveis que encheram a casa de Deus com os seus crimes, acusando-os de terem excedido em tudo quanto os mais cruéis perseguidores da igreja fizeram sofrer seus fiéis. Deste modo, visto que a clemência de Deus tolerou todas essas abominações na santa sede, pode, assim, igualmente permitir o reinado de uma papisa. Outras mulheres em hábitos sacerdotais Além disso, Joana não é nem a primeira e nem a única mulher que vestiu o hábito sacerdotal; Santa Tecla, disfarçada em trajes eclesiásticos, acompanha São Paulo em todas as viagens; uma cortesã chamada Margarida disfarçou-se de padre e entrou para um convento de homens, onde tomou o nome de frei Pelâgio; Eugênia. filha do célebre Felipe, governador de Alexandria no reinado do imperador Galiano. dirigia um convento de frades e não descobriu o seu sexo senão para se desculpar de uma acusação de sedução que lhe fora intentada por uma rapariga. A crônica da Lombardia, composta por um monge de Monte Cassino, refere igualmente, segundo um padre chamado Heremberto, que escrevia trinta anos depois da morte de Leão IV, a história de uma mulher que fora patriarca de Constantinopla. Depois da narração de todos esses fatos, que foram conservados nas legendas para edificação dos fiéis, não deveriam confessar os padres que Deus permitiu o pontificado da papisa para abaixar o orgulho da santa sede e para mostrar que os vigários do Cristo não são infalíveis? Além disso, a história de Joana não se aproxima da historia da Virgem Maria? A mãe do Cristo não deu à luz sem deixar de ser virgem e não governou sobre o próprio Deus, pois não diz a Escritura que "Jesus Cristo era submisso a sua mãe"? Se, pois, o criador de todas as coisas não desdenhou obedecer a uma mulher, por que razão queriam ser os seus ministros mais orgulhosos do que Deus todo poderoso e recusarem curvar a fronte diante da papisa? Além disso, ao sétimo século os fiéis tinham reconhecido sacerdotisas, pois os atos do concilio de Calcedônia dizem formalmente que as mulheres podiam receber as ordens do sacerdócio e serem sagradas solenemente como os leigos. São Clemente, sucessor imediato dos apóstolos de Jesus, fala detalhadamente numa epístola sobre as funções das sacerdotisas; diz que devem celebrar os santos mistérios, pregar o Evangelho aos homens e as mulheres e aptas para os ungir em todo o corpo, na cerimônia do batismo. Atton, bispo de Verceìl, refere nas suas obras que as sacerdotisas, na igreja primitiva, presidiam nos templos, faziam instruções religiosas e filosóficas e que tinham debaixo das suas ordens diaconisas que as serviam, como os diáconos faziam aos padres. Santo Atanásio, bispo de Alexandria, e São Cipriano explicam mais detaIhadamente ainda acerca dessas mulheres; queixam-se de que muitas dentre elas, afastando-se das suas regras que lhes eram impostas, praticavam a garridice, empregavam os enfeites e os ornatos, pintavam o rosto, não tinham nem reserva nem pudor nas suas palavras, freqüentavam os banhos públicos e banhavam se completamente nuas, junto com padres e jovens diáconos. Não era, pois, um fato novo para a Igreja a elevação de uma mulher ao sacerdócio quando apareceu a papisa Joana: muitas outras mulheres antes dela haviam sido consagradas sacerdotisas, recebido o dom do Espírito Santo e exercido as funções eclesiásticas. Por que razão procuram os adoradores da púrpura romana contestar a exatidão desses fatos historicos e irrecusáveis? Por que querem aniquilar até a própria recordação da existência de uma mulher célebre? A razão é simples: a majestade do sacerdócio, a infalibilidade pontifical, as pretensões da santa sede à dominação universal, todo esse edifício de superstição e de idolatrias sobre as quais esta colocada a cadeira de São Pedro desaba diante de uma mulher papisa!!!!
Do livro "Os crimes dos papas", de Maurice de Lachatre, 1853.
Por : Maurice de Lachatre |
QUEM SOU EU...
- JOYCE LIBBYR
- São Paulo, SP, Brazil
- SOCIÓLOGA,HISTORIADORA, EDUCADORA E ARTISTA PLÁSTICA. Sou buscadora e curiosa por natureza. Sou bruxa, sem poções e crendices infundadas, observo e me integro à terra e aos seus movimentos. Amo a vida, os animais, plantas e a natureza. Solitária por vocação, pois nela busco forças e encontro repouso. Avessa aos ritos impostos e às convenções sociais, procuro a minha verdade. Sou arisca e desprezo dogmas, eles são a perdição da humanidade. Sou humana e falível. Busco o melhor de cada crença. deletando as manipulações. Amo o silêncio, a força da natureza e o equilíbrio cósmico, acho que sou inqualificável... Sou real e palpável, mas também sei ser etérea e indecifrável, se me convier. Amo o conhecimento, o mistério, as brumas da sensibilidade. Se quiser me conhecer melhor, siga-me...
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05 junho, 2010
PAPISA JOANA
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