A origem da morte por apedrejamento, questão reavivada com a condenação da nigeriana Amina Lawal, é remota — a prática já existia há milhares de anos, em muitos lugares, mas especialmente no Oriente Médio. Com a sua origem exata desconhecida, a condenação de adúlteros (homens e mulheres) à morte por apedrejamento, está, por exemplo, na Torá, livro sagrado dos judeus.
“Quando for encontrado um homem deitado com uma mulher que tenha marido, morrerão ambos, e eliminarás o mal de Israel. Quando houver uma moça virgem desposada com algum homem, e um outro homem a achar na cidade, e se deitar com ela, tirareis a ambos à porta da cidade, e os apedrejareis, e morrerão; e eliminarás o mal do meio de ti” (Deuteronômio, 22, 22).
Evidentemente, a prática não era freqüente entre os judeus da Antiguidade. Um Sinédrio (tribunal composto por sacerdotes, anciãos e escribas) que, em setenta anos, condenasse mais de duas pessoas à morte, por qualquer motivo, era considerado sanguinário e visto com reprovação (porque da mesma forma que as leis eram severas, aplicá-las com moderação era um imperativo). Com a diáspora, e o contato com outras culturas, a prática, abandonada, passou a ser apenas uma referência histórica.
Muitos vêem no cristianismo uma “evolução” do judaísmo, mas ele não é: são realidades distintas, paralelas e, há dois mil anos, simultâneas. Dito isto, há também nos Evangelhos uma referência ao apedrejamento de adúlteros, mas para condená-lo. Está em João, 8, 3. Como que para testar Jesus, um grupo de escribas e fariseus o interroga: “Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante delito de adultério. Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres. Tu, pois, que dizes?” Jesus demora a responder, mas dá o veredicto: “Quem dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro a lhe atirar uma pedra!”. Como todos se afastaram, Jesus conclui: “Nem eu te condeno. Vai, e, de agora em diante, não peques mais.”
O leitor pode notar que Jesus não revoga a lei. Ele poderia aceitar a provocação e dizer que não concordava com ela. Mas prefere reformá-la, mantendo-a de tal maneira que aplicá-la é uma impossibilidade: como somos todos pecadores, nenhuma pedra pode ser atirada. Mas, obviamente, não se trata de um endosso ao adultério. Isso fica ainda mais claro quando nos lembramos de outro trecho dos Evangelhos: “Ouvistes o que foi dito: não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo: todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração. Caso o teu olho direito te leve a pecar, arranca-o e lança-o para longe de ti, pois é preferível que se perca um dos seus membros do que todo o seu corpo seja lançado na geena” (Mateus, 5, 27).
O islamismo segue a tradição judaico-cristã, respeita os Livros anteriormente revelados, mas faz deles uma releitura, por considerar que nenhum chegou sem deturpações aos tempos do profeta Maomé. A interdição de certos alimentos, como carne de porco, é comum a judeus e muçulmanos, assim como a circuncisão e outros mandamentos. Na época do Profeta, adúlteros eram punidos com o apedrejamento até a morte, porque acreditavam que esta era a lei de Deus. Mas um episódio da vida do Profeta também mudou radicalmente a interpretação dessa lei, e tornou a sua aplicação quase impossível.
Toda vez que Maomé saía em campanha, levava uma de suas esposas. Certa vez, levou Aisha, uma jovem muito bonita. À noite, com todos acampados, Aisha, assim como todas as esposas, dormia em seu palanquim (uma espécie de liteira coberta), no chão; de manhã, para seguir viagem, o palanquim era posto em cima de um camelo. Um dia, ao alvorecer, ela saiu do palanquim para fazer suas necessidades bem longe do acampamento, já que ela era ali a única mulher. Ao voltar, notou que havia perdido o seu colar e voltou para procurá-lo. Demorou-se. O Profeta acordou e mandou levantar acampamento. Os condutores de Aisha, pensando que ela estivesse no palanquim, levantaram-no, puseram-no no camelo e seguiram viagem. Não perceberam a ausência de Aisha, porque ela era leve, explicam as tradições. Quando Aisha voltou, viu-se sozinha, mas acreditou que logo dariam por falta dela. Minutos depois, porém, um dos homens da comitiva de Maomé, que se atrasara na retaguarda para resolver algum problema, viu a esposa do Profeta, inteirou-se do que ocorrera, e decidiu levá-la em seu camelo em direção à caravana. Aisha foi devolvida.
Ao chegar em casa, Aisha caiu doente e logo começaram rumores de que ela traíra o Profeta com o homem que lhe dera carona; a história do colar não passaria de um ardil. A pena para o adultério era o apedrejamento. O que faria o Profeta? O drama durou um mês, mas Maomé, mesmo sabendo de tudo, nada decidiu. Magoado com Aisha, porém, passou a tratá-la tão friamente que esta lhe pediu para ser cuidada na casa dos pais. Como estava doente, pouparam-na dos boatos. Quando Aisha soube de tudo, desesperou-se com a injustiça. Chorou de tal modo, que o Profeta foi até ela e disse que Deus acabaria por tornar conhecida a inocência dela, se este fosse o caso, mas que ela também poderia confessar-se culpada, porque seria perdoada se estivesse arrependida de coração.
Aisha então disse que nada falaria. Maomé não era o Mensageiro de Deus? Pois ela esperaria que Deus se manifestasse. Em minutos, Maomé desfaleceu, seu rosto tornou-se pálido e suado. Ao despertar, Maomé disse que Deus tinha- lhe revelado que Aisha era inocente, que seus detratores eram gente da pior espécie e que, dali em diante, alguém só poderia ser condenado à morte por adultério se confessasse o crime ou se fosse pego em flagrante por quatro testemunhas oculares e simultâneas do ato adúltero. E estabeleceu 80 chibatadas a quem praticasse falso testemunho.
Com isso, é praticamente impossível alguém ser condenado, a menos que decida trair o cônjuge em praça pública. Assim, mesmo nos países que adotam a Sharia (a lei islâmica), não são conhecidos casos de apedrejamento de adúlteros.
Na Nigéria, os fanáticos condenaram Amina com base numa confissão, que ela depois disse que lhe foi tirada à força, (perdendo, portanto, a validade) e por estar grávida. O islamismo permite que uma mulher peça o divórcio se o marido não estiver sustentando a família, deixar de protegê-la ou até mesmo se não estiver dando prazer à mulher. Mas impõe que a divorciada se abstenha de sexo por três períodos menstruais, para que não haja dúvida em relação à paternidade. Amina teria confessado que engravidou neste período. Com base nisso, os fanáticos quiseram puni-la, esquecendo-se da lição de tolerância dada pelo Profeta.
Mas por que tais fatos só têm acontecido em países islâmicos, se há fundamentalistas em todas as religiões? Certamente há a miséria e a ignorância. Mas me parece que o principal motivo é outro: é nos países muçulmanos que a fé tem sido usada com mais freqüência como motor para se chegar ao poder. E, uma vez no poder, é através da religião, deturpada por toda sorte de radicalismos, que se procura manter o controle sobre o povo. Fundamentalista sem poder político é um leão sem dentes: não apedreja, não fere, não mata; apenas prega a sua visão estreita do mundo.
Esses fanáticos dizem querer defender a pureza da religião. Eles parecem não perceber, no entanto, que em cada homem-bomba, em cada ato de terror, em cada mulher condenada a morrer apedrejada, a verdadeira vítima é o próprio Islã, uma palavra árabe que tem a mesma raiz da palavra paz, mas que, por obra desses fanáticos, tem sido vista como o oposto do que é: uma religião bárbara e violenta. A pedra não atingiria apenas Amina, mas, principalmente, o islamismo cuja pureza eles dizem defender.
ALI KAM
A Somália é um dos países mais pobres e violentos da África. Depois que seu ditador foi deposto em 1991, diversas milícias entraram em guerra para controlar o país. O governo oficial não funciona bem e quase todas as instituições públicas estão em colapso.
Neste cenário Aisha Ibrahim Duhulow, de 13 anos, deu queixa de ter sido estuprada por três homens. A milícia islâmica que controla a região decidiu condená-la por adultério. A pena? Ser apedrejada atá a morte em um estádio para que todos possam assistir.
Assim foi feito. No dia 27 de outubro, na cidade portuária Kismayo, em um estádio com cerca de mil espectadores dezenas de homens apedrejaram Aisha até a morte.
Mesmo que a mídia local tenha dito que ela tinha 23 anos, a Anistia Internacional e o pai da garota confirmara a idade de 13 anos. "A criança teve uma morte horrível nas mãos dos grupos armados de oposição que controlam atualmente Kismayo", afirma David Copeman que trabalha na região para a Anistia Internacional.
Infelizmente o poder de grupos islâmicos armados está crescendo na região, principalmente por causa da ajuda enviada por militantes maiores como a al-Qaida. |
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