Fabricado em jacarandá da Bahia, madeira nobre, cortada, foi levado em forma de toras ou pedaços para a França, onde é transformado num pequeno piano de estudo, pés torneados, detalhes em metal, apenas dois pedais, pois é modesto, mesmo assim, um piano.
Volta, desta vez, em forma de um lindo pianinho, destinado à moças delicadas, de mãos trêmulas, inseguras perante o enigma das partituras, mas que, com o passar do tempo, se tornavam hábeis, prontas para os saraus , onde de acordo com a desenvoltura da pianista, determinavam um bom casamento, através um bom partido, que lhes garantiriam a segurança social da época e a satisfação da família.
O tempo passa, e o pequeno piano cumpre o seu papel, auxilia o destino das moças casadoiras, se torna o algoz dos moleques sem talento, alvo de dedilhares furiosos de crianças que chegam na casa dos outros e aprontam estripolias com o velho teclado de marfim, que se perdeu no decorrer da sua longa vida.
O tempo passa, e piano não é mais sinal de status, torna-se um trambolho, coisa sem função...
Quem sabe não vai parar num bordel decadente, que teima em manter a aura de lugar chic, onde polcas mal tocadas, nem são percebidas, pois os frequentadores estão no afã da satisfação barata e passageira.
Mais algumas décadas se passam, e o pianinho vai se mudando, ao sabor da vontade e da necessidade dos donos que se desinteressam pelo instrumento musical, outrora tão querido, lustrado e admirado como objeto de orgulho que quem o tivesse sob seu teto.
Talvez até em cortiço ele tenha parado, no máximo numa casinha de vila, morada de uma viúva, ou uma solteirona que sobrevivia com as aulas de piano, quem sabe.
Ele tem uma marca de ferro de passar, fruto do descaso e da ignorância de quem o tinha, e assim o tempo passou...
Tanto sofreu, tanto se deteriorou que alguém, na tentativa de deixá-lo mais apresentável, teve a idéia de pintá-lo de branco!!!
Isso na década de setenta.
Encostado numa pequena loja, lá estava ele esperando por mais um dono disposto a cuidar dele.
Numa tarde qualquer uma senhora passa distraídamente com sua filha, para comprar pão para o café da tarde. A moça se detém ante o piano branco, um tanto amarelado, mas ainda provido do glamour de outrora. e se encanta por ele.
Aí começa a história do meu Piano Pleyel, modesto, mas tão charmoso, presente ganho com tanto amor e pago à duras penas pela minha mãe.
O tempo passa, eu dedilho as notas simples da cartilha musical, solfejo como uma louca para decorar as frases musicais, detono com Chopin, toco hinos religiosos para deleite de minha mãe, arranho músicas populares, enfim, meu piano volta à vida depois de tanto abandono. Mas a vida continua, os afazeres tornam o meu contato como ele cada vez mais escasso, e mais uma vez a história se repete.
Minha mãe adoece, e sempre que pode eu toco para ela, então pressentindo que seu tempo nessa terra é curto, resolvi fazer uma homenagem ao seu esforço e decido reformá-lo.
O profissional me orienta e é bem claro que o valor a ser pago será menor que o valor comercial, mas isso não me desanimou.
Um piano pintado de branco, mal tratado, será que tinha rachaduras, buracos de cupim, imperfeições escondidas pela tinta?
Como saber, mas decidi a restaurá-lo mesmo assim.
O restauro leva mais de um ano, e quando ele ficou pronto foi emocionante!!!
Não havia rachaduras, nem buracos de cupim, lá estava aquela madeira majestosa, avermelhada, cheia de veios na madeira mais escuros e brilhantes, lindo e imponente como só o jacarandá sabe ser.
Depois do restauro veio a afinação, o cuidado constante, a flanelinha pra manter o brilho, etc...
Minha mãe ainda teve tempo de ver meu pianinho reluzente, ficou tão feliz que jamais vou esquecer o seu sorriso.
Ela se foi, hoje já não toco mais com frequência, mas lá está ele, imponente, no centro da sala, lugar de honra como ele merece.
Enquanto vida eu tiver, meu querido piano sempre estará comigo.
Penso nas pessoas, talvez escravos que transportaram a madeira, no desembarque, na travessia pelo Atlântico, na chegada a Paris, no trabalho dos artesãos, no transporte em tração animal até o porto, a longa travessia de volta, na chegada, no transporte até a loja, no primeiro dono, na recepção, na alegria da família, e também, na trajetória obscura do meu pianinho querido.
Quantas mãos, músicas, lágrimas derramadas, sentimentos despertados pela música, sonhos realizados ou desfeitos junto ao teclado....
Lá se vão no mínimo 110 anos de história, todos já se foram, morreram...
mesmo em minha casa, quantos que o tocaram não estão mais aqui, mas o som da música por eles executadas ainda estão em meus ouvidos, cheios de saudades e lembranças.
Essa é mais uma história, sem pretensões literárias, somente uma lembrança de um presente que representou o amor que minha mãe tinha por mim, e não poupou esforços em me fazer feliz.
Hoje é o segundo dias das mães sem ela, por isso escrevo essas linha como forma de homenageá-la de coração.