No Museu da Academia Nacional de Medicina, a mais antiga instituição de medicina do Brasil, no centro do Rio de Janeiro, uma inusitada fotografia chama a atenção de qualquer visitante. Cabelos curtos, os bigodes crescidos, o casaco e a pequena gravata, o aspecto estranhamente viril de uma senhora: a parteira Madame Durocher, a primeira mulher a integrar a Academia de Medicina e a única a ter seu retrato ostentado na grande sala de homenagens.
Nascida em Paris, em 1808, Madame Durocher chegou ao Rio de Janeiro, aos sete anos, acompanhando sua mãe, uma elegante modista francesa que imigrou para o Brasil, como alguns compatriotas, com a deposição de Napoleão I.
Durante seus primeiros anos no Brasil, Mme Durocher, uma moça refinada e delicada, trabalhou, na loja de sua mãe, como florista e modista, se casando (não oficialmente) com um brasileiro e tendo dois filhos homens. No entanto, alguns anos depois, sua mãe e seu marido morriam, sendo que o último assassinado por engano. Além disso, as dívidas financeiras da loja de sua mãe apenas se acumulavam, fazendo com que Durocher fosse obrigada a entregá-la a seus credores.
Mesmo tendo herdado alguns escravos de ganho, para seu sustento, Mme Durocher decidiu libertá-los e tomou uma grande decisão: preparar-se para uma nova profissão, a de parteira.
Durocher sabia, por experiência própria, que pouco se conhecia sobre o corpo feminino. Muitas mulheres preferiam morrer a ser examinadas pelos médicos ou parteiros, não aceitando o speculum, nem mesmo o toque vaginal. Várias conhecidas suas haviam simplesmente morrido de parto.
E foi assim que em 1832, foi a primeira e única aluna do Curso de partos da recém-criada Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Apesar de um grave problema de visão em um dos olhos, decorrente de uma doença na infância, Mme Durocher era uma aluna brilhante e, aos poucos, começou a atender suas clientes, tanto escravas, como prostitutas e mulheres da sociedade.
Ela não gostava de fazer qualquer tipo de distinção, nem racial ou social. Aos poucos, passou a dominar as técnicas obstétricas mais utilizadas em sua época, como a aplicação do fórceps, a versão, a embriotomia, a "encerebração", além de cuidar de eclampsia e hemorragias, complicações normalmente letais à parturiente ou ao feto. Praticava ainda a reanimação do recém-nascido, restabelecendo-lhe a respiração.
Com o tempo, também passou a fazer atendimentos clínicos na área ginecológica, cuidando da saúde de recém-nascidos e fazendo perícias médico-legais (casos de atentado violento ao pudor, defloramento, estupro e outros). Embora a prática ginecológica fosse vedada a quem não portasse o diploma de Medicina, Madame Durocher era constantemente procurada e indicada para desempenhar essas funções.
Na medida que precisava sair de noite para atender suas pacientes e depois de ter sofrido alguns acidentes e tentativas de abuso sexual, Mme Durocher começou a assumir um figurino masculino.
Passou a usar um guarda-roupa, onde entravam as vestes masculinas e as femininas, em desarmônica combinação: saia longa, gravata borboleta, sobrecasaca e meia-cartola de seda pretas. E acabou assumindo uma fealdade, que não lhe era natural: cortou os cabelos longos e passou a masculinizar suas feições faciais.
Durocher sabia que as parteiras eram pouco respeitadas e muitas eram vistas também como mulheres de vida fácil por atenderem as prostitutas que frequentavam as Casas de Misericórdia. E, assim, percebeu que não aparentar ser uma mulher e assumir uma persona masculina lhe “dava autoridade” perante os médicos e instituições, que começaram a aceitar seus artigos, teses e discussões.
Nas ruas do Rio, começou a ser vista como um misto mal definido de homem e mulher. E embora fosse ridicularizada ou perseguida em alguns jornais e mesmo por alguns médicos mais conservadores, Durocher era cada vez mais respeitada por sua capacidade de resolver os partos mais complicados e difíceis. Até o médico que a ridicularizou em vários artigos de jornal e que tinha sido responsável por uma inspeção em sua casa, teve que chamá-la para que ela fizesse o parto dificílimo de sua esposa.
Durocher afirmava que nunca negava um só chamado, mesmo das indigentes das ruas do Rio. Seu desgaste físico e intelectual era imenso, pois sempre se dispunha a discutir com autoridades algumas limitações da assistência governamental às mulheres. Mesmo durante as epidemias de febre amarela e de cólera, não deixou de atender aos pacientes das áreas mais pobres e acabou quase morrendo de cólera.
Mesmo alegando que jamais deixaria de atender as escravas e as prostitutas, foi nomeada parteira da casa imperial, tendo atendido a própria esposa do Imperador D.Pedro II, em seus partos.
Apesar de dizer que “como existem homens efeminados, existem mulheres varonis”, nunca se teve certeza se sua opção pelas vestimentas masculinas também foi fruto de uma opção sexual. Mme Durocher continuou criando seus filhos e manteve sempre uma discretíssima vida particular.
Fazendo questão de atender a pacientes que não podiam lhe pagar e doando seus proventos para pessoas necessitadas, após mais de 50 anos de trabalho e após 8.000 partos, Madame Durocher morreu em extrema pobreza. Gostava de dizer que tinha ajudado nos nascimentos de grandes homens, mas, com certeza, de também alguns grandes patifes.
No necrológico dela, um dos diretores da Academia de Medicina paradoxalmente escreveu: “foi a única mulher que penetrou nesse recinto, mas seu caráter másculo e seu talento viril patentearam nestas bancadas que tantas vezes ocupou, o real merecimento justificativo dessa merecida distinção”.
Como uma George Sand, Mme Durocher sabia que à mulher, no século XIX, era reservada a invisibilidade do trabalho doméstico, ou das funções sem reconhecimento, e assim, através da sua imagem masculina, acabou tendo valorizada sua imagem profissional, atuante e pública
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